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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A HISTÓRIA DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL



Texto na integra (clique no nome da autora)

A fim de contribuir para a compreensão desse processo e para a busca de respostas às questões formuladas acima, tomemos como exemplo a situação paulista.

Analisando, com base em fontes documentais, o ocorrido nessa província/estado em relação à questão dos métodos de ensino inicial da leitura e escrita, desde as décadas finais do século XIX, optei por dividir esse período em quatro momentos cruciais, cada um deles caracterizado pela disputa em torno de certas tematizações, normatizações e concretizações relacionadas com o ensino da leitura e escrita e consideradas novas e melhores, em relação ao que, em cada momento, era considerado antigo e tradicional nesse ensino. Em decorrência dessas disputas, tem-se, cada um desses momentos, a fundação de uma nova tradição relativa ao ensino inicial da leitura e escrita.

Apresento a seguir cada um desses quatro momentos cruciais com as respectivas disputas pela hegemonia de determinados métodos de alfabetização e, dentre outros múltiplos aspectos neles observáveis, menciono o papel desempenhado pelas cartilhas, que, dada sua condição de instrumento privilegiado de concretização dos métodos e conteúdos de ensino, permanecem no tempo e permitem recuperar aspectos importantes dessa história, contribuindo significativamente para a criação de uma cultura escolar e para a transmissão da(s) tradição (ões)*1.

1 o momento- A metodização do ensino da leitura

Até o final do Império brasileiro, o ensino carecia de organização, e as poucas escolas existentes eram, na verdade, salas adaptadas, que abrigavam alunos de todas as “séries” e funcionavam em prédios pouco apropriados para esse fim; eram as “aulas régias”, já mencionadas. Em decorrência das precárias condições de funcionamento, nesse tipo de escola o ensino dependia muito mais do empenho de professor e alunos para subsistir. E o material de que se dispunha para o ensino da leitura era também precário, embora, na segunda metade do século XIX, houvesse aqui algum material impresso sob a forma de livros para fins de ensino de leitura, editados ou produzidos na Europa. Habitualmente, porém, iniciava-se o ensino da leitura com as chamadas “cartas de ABC" e depois se liam e se copiavam documentos manuscritos.

Para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de marcha sintética (da "parte" para o "todo"): da soletração (alfabético), partindo do nome das letras; fônico (partindo dos sons correspondentes às letras); e da silabação (emissão de sons), partindo das sílabas. Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e seus nomes (método da soletração/alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo com certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente, reunidas as letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras e/ou sons e/ou sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à cópia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras.

As primeiras cartilhas brasileiras, produzidas no final do século XIX sobretudo por professores fluminenses e paulistas a partir de sua experiência didática, baseavam-se nos métodos de marcha sintética (de soletração, fônico e de silabação) e circularam em várias províncias/estados do país e por muitas décadas.

Em 1876, data que elegi como marco inicial do primeiro momento crucial nessa história, foi publicada em Portugal a Cartilha Maternal ou Arte da Leitura, escrita pelo poeta português João de Deus. A partir do início da década de 1880, o “método João de Deus” contido nessa cartilha passou a ser divulgado sistemática e programaticamente. principalmente nas províncias de São Paulo e do Espírito Santo, por Antonio da Silva Jardim, positivista militante e professor de português da Escola Normal de São Paulo.

Diferentemente dos métodos até então habituais, o “método João de Deus” ou “método da palavração” baseava-se nos princípios da moderna lingüística da época e consistia em iniciar o ensino da leitura pela palavra, para depois analisá-la a partir dos valores fonéticos das letras. Por essas razões, Silva Jardim considerava esse método como fase científica e definitiva no ensino da leitura e fator de progresso social.

Esse 1o. momento se estende até o início da década de 1890 e nele tem início um disputa entre os defensores do "método João de Deus" e aqueles que continuavam a defender e utilizar os métodos sintéticos: da soletração, fônico e da silabação. Com essa disputa, funda-se uma nova tradição: o ensino da leitura envolve necessariamente uma questão de método, ou seja, enfatiza-se o como ensinar metodicamente, relacionado com o que ensinar; o ensino da leitura e escrita é tratado, então, como uma questão de ordem didática subordinada às questões de ordem lingüística (da época).

2o momento – A institucionalização do método analítico

A partir de 1890, implementou-se a reforma da instrução pública no estado de São Paulo. Pretendendo servir de modelo para os demais estados, essa reforma se iniciou com a reorganização da Escola Normal de São Paulo e a criação da Escola-Modelo Anexa; em 1896, foi criado o Jardim da Infância nessa escola. Do ponto de vista didático, a base da reforma estava nos novos métodos de ensino, em especial no então novo e revolucionário método analítico para o ensino da leitura, utilizado na Escola-Modelo Anexa (à Normal), onde os normalistas desenvolviam atividades "práticas" e onde os professores dos grupos escolares (criados em 1893) da capital e do interior do estado deveriam buscar seu modelo de ensino.

A partir dessa primeira década republicana, professores formados por essa escola normal passaram a defender programaticamente o método analítico para o ensino da leitura e disseminaram-no para outros estados brasileiros, por meio de “missões de professores” paulistas. Especialmente mediante a ocupação de cargos na administração da instrução pública paulista e a produção de instruções normativas, de cartilhas e de artigos em jornais e em revistas pedagógicas, esses professores contribuíram para a. institucionalização do método analítico, tornando obrigatória sua utilização nas escolas públicas paulistas. Embora a maioria dos professores das escolas primárias reclamasse da lentidão de resultados desse método, a obrigatoriedade de sua utilização no estado de São Paulo perdurou até se fazerem sentir os efeitos da “autonomia didática” proposta na "Reforma Sampaio Dória" (Lei 1750, de 1920).

Diferentemente dos métodos de marcha sintética até então utilizados, o método analítico, sob forte influência da pedagogia norte-americana, baseava-se em princípios didáticos derivados de uma nova concepção — de caráter biopsicofisiológico — da criança, cuja forma de apreensão do mundo era entendida como sincrética. A despeito das disputas sobre as diferentes formas de processuação do método analítico, o ponto em comum entre seus defensores consistia na necessidade de se adaptar o ensino da leitura a essa nova concepção de criança.

De acordo com esse método analítico, o ensino da leitura deveria ser iniciado pelo “todo”, para depois se proceder à análise de suas partes constitutivas. No entanto, diferentes se foram tornando os modos de processuação do método, dependendo do que seus defensores consideravam o “todo”: a palavra, ou a sentença, ou a "historieta". O processo baseado na "historieta" foi institucionalizado em São Paulo, mediante a publicação do documento Instrucções praticas para o ensino da leitura pelo methodo analytico – modelos de lições. (Diretoria Geral da Instrução Pública/SP – [1915]). Nesse documento, priorizava-se a "historieta" (conjunto de frases relacionadas entre si por meio de nexos lógicos), como núcleo de sentido e ponto de partida para o ensino da leitura.

As cartilhas produzidas no âmbito do 2o. momento na história da alfabetização, especialmente no início do século XX, passaram a se basear programaticamente no método de marcha analítica (processos da palavração e sentenciação), buscando se adequar às instruções oficias, no caso paulista.

Iniciou-se, assim, uma acirrada disputa entre partidários do então novo e revolucionário método analítico para o ensino da leitura e os que continuavam a defender e utilizar os tradicionais métodos sintéticos, especialmente o da silabação.

Concomitantemente a essa disputa, teve lugar uma outra relativa aos diferentes modos de processuação do método analítico, dentre as quais se destaca a travada entre os professores paulistas e o fluminense João Köpke..

Nesse 2o. momento, que se estende até aproximadamente meados dos anos de 1920, a ênfase da discussão sobre métodos continuou incidindo no ensino inicial da leitura, já que o ensino inicial da escrita era entendido como uma questão de caligrafia (vertical ou horizontal) e de tipo de letra a ser usada (manuscrita ou de imprensa, maiúscula ou minúscula), o que demandava especialmente treino, mediante exercícios de cópia e ditado.

É também ao longo desse momento, já no final da década de 1910, que o termo “alfabetização” começa a ser utilizado para se referir ao ensino inicial da leitura e da escrita.

As disputas ocorridas nesse 2o. momento fundam uma outra nova tradição: no o ensino da leitura envolve enfaticamente questões didáticas, ou seja, o como ensinar, a partir da definição das habilidades visuais, auditivas e motoras da criança a quem ensinar; o ensino da leitura e escrita é tratado, então, como uma questão de ordem didática subordinada às questões de ordem psicológica da criança.

3 º momento – A alfabetização sob medida

Em decorrência da “autonomia didática” proposta pela "Reforma Sampaio Dória" e de novas urgências políticas e sociais, a partir de meados da década de 1920 aumentaram as resistências dos professores quanto à utilização do método analítico e começaram a se buscar novas propostas de solução para os problemas do ensino e aprendizagem iniciais da leitura e da escrita.

Os defensores do método analítico continuaram a utilizá-lo e a propagandear sua eficácia. No entanto, buscando conciliar os dois tipos básicos de métodos de ensino da leitura e escrita (sintéticos e analíticos), em várias tematizações e concretizações das décadas seguintes, passaram-se a utilizar: métodos mistos ou ecléticos (analítico-sintético ou vice-versa), considerados mais rápidos e eficientes. A disputa entre os defensores dos métodos sintéticos e os defensores dos métodos analíticos não cessaram; mas o tom de combate e defesa acirrada que se viu nos momentos anteriores foi-se diluindo gradativamente, à medida que se acentuava a tendência de relativização da importância do método e, mais restritamente, a preferência, nesse âmbito, pelo método global (de contos), defendido mais enfaticamente em outros estados brasileiros*2.

Essa tendência de relativização da importância do método decorreu especialmente da disseminação, repercussão e institucionalização das então novas e revolucionárias bases psicológicas da alfabetização contidas no livro Testes ABC para verificação a maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita (1934), escrito por M. B. Lourenço Filho. Nesse livro, o autor apresenta resultados de pesquisas com alunos de 1 o grau (atual 1 ª série do ensino fundamental), que realizou com o objetivo de buscar soluções para as dificuldades de nossas crianças no aprendizado da leitura e escrita. Propõe, então, as oito provas que compõem os testes ABC, como forma de medir o nível de maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita, a fim de classificar os alfabetizandos, visando à organização de classes homogêneas e à racionalização e eficácia da alfabetização.

Desse ponto de vista, a importância do método de alfabetização passou a ser relativizada, secundarizada e considerada tradicional. Observa-se, no entanto, embora com outras bases teóricas, a permanência da função instrumental do ensino e aprendizagem da leitura, enfatizando-se a simultaneidade do ensino de ambas, as quais eram entendidas como habilidades visuais, auditivas e motoras.

Também a partir dessa época, aproximadamente, as cartilhas passaram a se basear predominantemente em métodos mistos ou ecléticos (analítico-sintético e vice-versa) e começaram a se produzir os manuais do professor acompanhando as cartilhas, assim como se disseminou a idéia e a prática do "período preparatório”.

Vai-se, assim, constituindo um ecletismo processual e conceitual em alfabetização, de acordo com o qual a alfabetização (aprendizado da leitura e escrita) envolve obrigatoriamente uma questão de “medida”, e o método de ensino se subordina ao nível de maturidade das crianças em classes homogêneas. A escrita continuou sendo entendida como uma questão de habilidade caligráfica e ortográfica, que devia ser ensinada simultaneamente à habilidade de leitura; o aprendizado de ambas demandava um “período preparatório”, que consistia em exercícios de discriminação e coordenação viso-motora e auditivo-motora, posição de corpo e membros, dentre outros.

Nesse 3o. momento, que se estende até aproximadamente o final da década de 1970, funda-se uma outra nova tradição no ensino da leitura e da escrita: a alfabetização sob medida, de que resulta o como ensinar subordinado à maturidade da criança a quem se ensina; as questões de ordem didática, portanto, encontram-se subordinadas às de ordem psicológica.

4 º momento – Alfabetização: construtivismo e desmetodização

A partir do início da década de 1980, essa tradição passou a ser sistematicamente questionada, em decorrência de novas urgências políticas e sociais que se fizeram acompanhar de propostas de mudança na educação, a fim de se enfrentar, particularmente, o fracasso da escola na alfabetização de crianças. Como correlato teórico-metodológico da busca de soluções para esse problema, introduziu-se no Brasil o pensamento construtivista sobre alfabetização, resultante das pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita desenvolvidas pela pesquisadora argentina Emilia Ferreiro e colaboradores. Deslocando o eixo das discussões dos métodos de ensino para o processo de aprendizagem da criança (sujeito cognoscente), o construtivismo se apresenta, não como um método novo, mas como uma “revolução conceitual”, demandando, dentre outros aspectos, abandonarem-se as teorias e práticas tradicionais, desmetodizar-se o processo de alfabetização e se questionar a necessidade das cartilhas.

A partir de então, verifica-se, por parte de autoridades educacionais e de pesquisadores acadêmicos, um esforço de convencimento dos alfabetizadores, mediante divulgação massivas de artigos, teses acadêmicas, livros e vídeos, cartilhas, sugestões metodológicas, relatos de experiências bem sucedidas e ações de formação continuada, visando a garantir a institucionalização, para a rede pública de ensino, de certa apropriação do construtivismo.

Inicia-se, assim, uma disputa entre os partidários do construtivismo e os defensores — quase nunca “confessos”, mas atuantes especialmente no nível das concretizações — dos tradicionais métodos (sobretudo o misto ou eclético), das tradicionais cartilhas e do tradicional diagnóstico do nível de maturidade com fins de classificação dos alfabetizandos, engendrando-se um novo tipo de ecletismo processual e conceitual em alfabetização.

Quanto aos métodos e cartilhas de alfabetização, os questionamentos de que foram alvo parecem ter sido satisfatoriamente assimilados, resultando: na produção de cartilhas “construtivistas” ou “sócio-construtivistas” ou “contrutivistas-interacionistas”; na convivência destas com cartilhas tradicionais*3 e, mais recentemente, com os livros de alfabetização, nas indicações oficiais e nas estantes dos professores, muitos dos quais alegam tê-las apenas para consulta quando da preparação de suas aulas; e no ensino e aprendizagem do modelo de leitura e escrita veiculado pelas cartilhas, mesmo quando os professores dizem seguir uma “linha construtivista” ou “interacionista” e seus alunos não utilizarem diretamente esse instrumento em sala de aula.

De qualquer modo, nesse momento, tornam-se hegemônicos o discurso institucional sobre o construtivismo e as propostas de concretização decorrentes de certas apropriações da teoria construtivista. E tem-se, hoje, a institucionalização, em nível nacional, do construtivismo em alfabetização, verificável, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), dentre tantas outras iniciativas recentes.

Nesse 4 º momento — ainda em curso —,funda-se uma outra nova tradição: a desmetodização da alfabetização, decorrente da ênfase em quem aprende e o como aprende a língua escrita (lecto-escritura), tendo-se gerado, no nível de muitas das apropriações, um certo silenciamento a respeito das questões de ordem didática e, no limite, tendo-se criado um certo ilusório consenso de que a aprendizagem independe do ensino.

É importante ressaltar, no entanto, que, também na década de 1980, observa-se a emergência do pensamento interacionista em alfabetização , que vai gradativamente ganhando destaque e gerando uma espécie de disputa entre seus defensores e os do construtivismo. Essa “nova” disputa, por sua vez, foi-se diluindo, à medida que certos aspectos de certa apropriação do interacionismo foram sendo conciliados com certa apropriação do construtivismo; essa conciliação, pelo que posso observar até o momento, foi subsumida no discurso institucional sobre alfabetização. E, dentre a multiplicidade de problemas que enfrentamos hoje a respeito do ensino inicial da leitura e escrita, as dificuldades decorrentes, em especial, da ausência de uma “didática construtivista” vêm abrindo espaço para a tentativa, por parte de alguns pesquisadores, de apresentar "novas" propostas de alfabetização baseadas em antigos métodos, como os de marcha sintética.

Devo, ainda, mencionar, pelo menos, dentre essa multiplicidade de aspectos, as discussões e propostas em torno do letramento, entendido ora como complementar à alfabetização*4, ora como diferente desta e mais desejável, ora como excludentes entre si.


Modernidades em alfabetização

Ao longo do período histórico abordado nos tópicos anteriores, observa-se a recorrência discursiva da mudança, marcada pela tensão constante entre modernos e antigos, no âmbito da disputa pela hegemonia de determinados métodos de alfabetização.

A mudança proposta em cada um dos quatro momentos cruciais exigiu sempre uma operação de diferenciação qualitativa em relação ao que era sentido como passado (recente) em cada um desses momentos, mediante a reconstituição sintética desse passado, a fim de homogeneizá-lo e esvaziá-lo de qualidades e diferenças, identificando-o como portador do antigo — indesejável, decadente e obstáculo ao progresso — , e buscando-se definir o novo — melhor e mais desejável — ora contra, ora independente em relação ao antigo, mas sempre a partir dele.

Para viabilizar a mudança, tornou-se, portanto, necessário, em cada um dos quatro momentos cruciais, produzir uma versão do passado e desqualificá-la, como se se tratasse de uma herança incômoda, que impõe resistências à fundação do novo, especialmente quando a filiação decorrente (embora, muitas vezes, não assumida) da tradição atuante no presente (e, em particular, a tradição decorrente de um passado recente, sentido como presente, porque operante no nível das concretizações) ameaça fazer voltarem à cena os mesmos personagens do passado, que seus herdeiros desejam esquecer, rever ou aprimorar.

No entanto, se houve desejos de mudanças assim como mudanças efetivas, ao longo dessa história se podem encontrar, também, permanências e semelhanças indicadoras de continuidades entre o quatro momentos cruciais.

Dentre essas semelhanças e permanências, podem-se observar, por exemplo, as relacionadas: com a "questão dos métodos", uma vez que, mesmo postulando a mudança dos métodos de alfabetização, no âmbito dessa querela os sujeitos se movimentam em torno de um mesmo eixo — a eficácia da alfabetização é uma questão de métodos —; e com as concretizações impostas pelas cartilhas de alfabetização, que vão sedimentando, concomitantemente a uma cultura escolar, certas concepções de língua/linguagem, alfabetização, métodos e conteúdos desse ensino de leitura e escrita.

Ou, ainda, dentre essas semelhanças e permanências, pode-se observar que, mesmo se propondo o deslocamento do eixo das discussões dos métodos de ensino para o nível de maturidade ou o processo de aprendizagem do alfabetizando, justificado por outras tendências em psicologia — como é o caso das resultantes das pesquisas de Lourenço Filho e das desenvolvidas por Ferreiro e colaboradores —, permanece a psicologia como base teórica com função diretora no ensino da leitura e da escrita. Ou se podem observar, também, as semelhanças e filiações entre as várias tendências em psicologia que se apresentam como diferentes entre si, encontrando-se, porém, algumas delas, assentadas em bases epistemológicas comuns.

É possível, então, pensar que, no ritmo desse complexo movimento histórico da alfabetização no Brasil, marcado pela questão dos métodos, a despeito das mudanças efetivamente ocorridas, a desejada ruptura com a tradição se processa, muitas vezes, no interior de um quadro de referências tradicional e, por vezes, ao nível das superestruturas, apenas, indicando a continuidade, no tempo, de certos ideais centrados na concepção de educação como esclarecimento — fim não atingido, que permanece como parâmetro primeiro a demandar ajustes e meios cada vez mais eficazes —, em cujo âmbito se vai consolidando o interesse pela alfabetização como área estratégica e cada vez mais autônoma (ainda que limitada) para a objetivação de projetos políticos e sociais decorrentes de urgências de cada época, ao mesmo tempo em que se vão produzindo reflexões e saberes que configuram o movimento de escolarização do ensino e aprendizagem da leitura e escrita e de sua constituição como objeto de estudo/pesquisa, evidenciando a alfabetização como o signo mais complexo da relação problemática entre educação e modernidade.

Enquanto suposto e prometido resultado da ação da escola e enquanto rito de iniciação na passagem do mundo privado para o mundo público da cultura e da linguagem, o ensino-aprendizagem da língua escrita na fase inicial de escolarização de crianças se torna índice de medida e testagem da eficiência, da ação modernizadora da educação contra a "barbárie".

É possível, enfim, pensar que, sob o signo da modernidade, ou seja, do tempo histórico ao longo do qual se observa o movimento aqui apresentado, coexistem diferentes modernidades, no que se refere à alfabetização, de acordo com o modo como, em cada um dos momentos: produziram-se o sentimento e a consciência do tempo então presente; pretendeu-se, com “a verdade científica e definitiva”, constitutiva da busca incessante daquele sentido moderno da escola e da educação, preencher a lacuna entre seu passado e futuro; e buscaram-se os sentidos do ler e escrever, para se enfrentarem as dificuldades de

nossas crianças em adentrar no mundo público da cultura letrada.

Considerações finais

Também nos dias atuais a discussão sobre métodos de alfabetização se faz presente, seja quando se propõe a desmetodização desse processo, seja quando se discutem cartilhas, seja quando se utilizam, mesmo que silenciosamente, determinados métodos considerados tradicionais. Como se viu, porém, não se trata de uma discussão nova, nem tampouco se trata de pensar que, isoladamente, um método possa resolver os problemas da alfabetização. Mas, também como apontei, por se tratar de processo escolarizado, sistemático e intencional, a alfabetização não pode prescindir de método (nem de conteúdos e objetivos, dentre outros aspectos necessários ao desenvolvimento de atividades de ensino

escolar).

Em outras palavras, a questão dos métodos é tão importante (mas não a única, nem a mais importante) quanto as muitas outras envolvidas nesse processo multifacetado, que vem apresentando como seu maior desafio a busca de soluções para as dificuldades de nossas crianças em aprender a ler e escrever e de nossos professores em ensiná-las. E qualquer discussão sobre métodos de alfabetização que se queira rigorosa e responsável, portanto, não pode desconsiderar o fato de que um método de ensino é apenas um dos aspectos de uma teoria educacional relacionada com uma teoria do conhecimento e com um projeto político e social.

Se quisermos mudar ou manter nossa situação presente e projetar outro futuro, em vista do que foi aqui apresentado não podemos desconsiderar a complexidade do problema nem o passado desse ensino, ingenuamente supondo que, em relação a esse passado, possamos, ou efetuar total ruptura, ou, de maneira saudosista, buscar seu total resgate, como se não tivesse havido nenhum avanço científico, de fato, nesse campo de conhecimento.

É preciso conhecer aquilo que constitui e já constituiu os modos de pensar, sentir, querer e agir de gerações de professores alfabetizadores (mas não apenas), especialmente para compreendermos o que desse passado insiste em permanecer. Pois é justamente nas permanências, especialmente as silenciadas ou silenciosas, mas operantes, e nos retornos ruidosos e salvacionistas, mas simplistas e apenas travestidos de novo, que se encontram as maiores resistências. E é também de seu conhecimento que se podem engendrar as reais possibilidades de encaminhamento das mudanças necessárias, em defesa do direito de nossas crianças ingressarem no mundo novo da cultura letrada, o qual, embora há mais de um século prometido, vem sendo veladamente proibido a muitas delas, que não conseguem aprender a ler e a escrever; em defesa, enfim, de seu direito de, por meio da conquista da leitura e escrita e sobretudo de seu sentido, não serem submetidas ao dever, apenas, de aprender a, quando muito, codificar e decodificar signos lingüísticos, na ilusão de um dia, quem sabe?, poderem finalmente ler e escrever, se permanecerem na escola e se alguém lhes ensinar, de fato; em defesa de seu direito de, por meio da conquista do sentido da leitura e escrita, serem resgatadas do abandono da escuridão e da solidão e não

capitularem frente à proibição de ingressarem no novo mundo prometido.

Esse era também um desejo do protagonista de Infância, de Graciliano Ramos, aquele mesmo protagonista que se julgava incapaz de aprender a ler e a escrever, que sofria com suas trocas de “t” e “d”, que foi infernizado por um tal “Ter-te-ão”. Em um dos episódios do livro, o protagonista nos conta o sofrimento por que passou, em decorrência de “uma terrível proibição, relativa à brochura de capa amarela”, intitulada O menino da mata e seu cão Piloto, que a prima considerava coisa do diabo; conta-nos, também, que, a despeito das dificuldades que tinha com a leitura e a escrita na escola e com as letras miúdas do folheto que lia “como quem decifra uma língua desconhecida”, esse romance representava para ele uma clareira de liberdade, que lhe permitia pensar “nas crianças que vencem gigantes e bruxas, vencem o medo da floresta” e o fazia esquecer o “código medonho” que o “atazanava”. Durou pouco, porém, esse desejo; “esmagado” pelo dever, pela culpa e pelo remorso, por fim, cedeu à proibição:



Chorei, o folheto caído, inútil. O menino da mata e o cão Piloto morriam. E nada 
para substituí-los. Imenso desgosto, solidão imensa. Infeliz o menino da mata, eu 
infeliz, infelizes todos os meninos perseguidos, sujeitos aos cocorotes, aos bichos 
que ladram à noite.
[...]

Ai de mim, ai das crianças abandonadas na escuridão.
(RAMOS, Graciliano. Infância. 10 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. p. 228.)


*1) A esse respeito, sugiro a leitura de: MORTATTI, M. R. L. Cartilha de alfabetização e cultura escolar: um pacto secular. Cadernos CEDES (Cultura escolar: história, práticas e representações), n. 52, p. 41-54, 2000.

*2) Devo ressaltar que, a partir dos anos de 1930, as iniciativas estaduais (não apenas paulistas) foram-se "federalizando", acompanhando o processo de nacionalização que se seguiu à Revolução de Outubro.

*3) Assim como ocorreu com os métodos de ensino da leitura e escrita, evidentemente a publicação de novas cartilhas não impediu a continuidade de circulação das antigas, muitas das quais continuaram a ser utilizadas por várias décadas, após a publicação de suas primeiras edições, desde aquelas do final do século XIX.

*4) O pensamento que denomino "interacionista" baseia-se em uma concepção interacionista de linguagem, de acordo com a qual o texto (discurso) é a unidade de sentido da linguagem e deve ser tomado como objeto de leitura e escrita, estabelecendo-se o texto como conteúdo de ensino, que permite um processo de interlocução real entre professor e alunos e impede o uso de cartilhas para ensinar a ler e escrever. A esse respeito, ver, especialmente: MORTATTI, M. R. L. Uma proposta para o próximo milênio: o pensamento interacionista sobre alfabetização. Presença pedagógica. Belo Horizonte, v. 5, n. 29, p. 22-27, set./out. 1999.

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