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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

CIENCIA, COISA BOA


POR RUBEN ALVES*

Fernando Pessoa dizia que “pensar é estar doente dos olhos”. No que eu concordo. E até um pouco: “pensar é estar doente do corpo”. O pensamento marca o lugar da enfermidade. Ah! Você duvida. O meu palpite é que, neste preciso momento, você não deva estar tendo pensamentos sobre os seus dentes, a menos que um deles esteja doendo. Quando os dentes estão bons não pensamos neles. Como se eles fossem inexistentes. O mesmo com os olhos. Você só tomará consciência deles se estiver com problemas oculares, miopia ou outras atrapalhações. Quando os olhos estão bem a gente não pensa neles: eles se tornam transparentes, invisíveis, desconhecidos, e através de sua absoluta transparência e invisibilidade o mundo aparece. O corpo inteiro é assim. Quando está bom, sem pedras no sapato, sem cálculos renais ou hemorróidas, sem taquicardias ou enxaquecas, ele fica também transparente, e a gente se coloca inteiramente, não nele, mas na coisa de fora: o caqui, a árvore, o poema, o corpo do outro, a música. Quando o corpo está bem ele não conhece. Claro que tem pensamentos; mas são pensamentos de outro tipo, de puro gozo, expressivo de uma harmonia que não deve ser perturbada por nenhuma atividade epistemológica.

Mas basta aparecer a dor para que tudo se altere. A dor indica que um problema apareceu. A vida não vai bem. É aquela perturbação estomacal, mal-estar terrível, vontade de vomitar, e vem logo a pergunta: “Que foi que comi? Será que bebi demais? Ou teria sido a lingüiça frita? Pode ser, também, que tudo tenha sido provocado por aquela contrariedade que tive...” Estas perguntas que fazemos Diante de um problema, são aquilo que na linguagem cientifica recebe o nome de hipóteses. Hipótese é o conjunto de peças imaginárias de um quebra-cabeças, que acrescentamos àquela que já temos em mãos com o propósito de compreendê-la. Compreender, evidentemente, para evitar que o incômodo se repita. Pensar para não sofrer. Deve haver, no universo, milhões e milhões de situações que nunca passaram pela nossa cabeça: nunca tomamos consciência delas, nunca as conhecemos. É que elas nunca nos incomodaram, não perturbaram o corpo, não lhe produziram dor. Só conhecemos aquilo que incomoda. Não, estou dizendo toda a verdade. Não é só da dor. Do prazer também. Você vai almoçar numa casa e lá lhe oferecem um prato divino, que dá ao seu corpo sensações novas de gosto e olfato. Vem logo a idéia: “Que bom seria se, de vez em quando, eu pudesse renovar este prazer. E, infelizmente, não posso pedir para continuar a ser convidado.” Usamos então a fórmula clássica: “- Que delícia: eu quero a receita...” Traduzindo, para os nossos propósitos: “Quero possuir um conhecimento que me possibilite repetir um prazer já tido.” O conhecimento tem sempre o caráter de receita culinária. Uma receita tem a função de permitir a repetição de uma experiência de prazer. Mas quem pede a repetição não é intelecto. É o corpo. Na verdade, o intelecto puro odeia a repetição. Está sempre atrás de novidades. Uma vez de posse de um determinado conhecimento ele não o fica repassando e repassando. “Já sei”, ele diz, e prossegue para coisas diferentes. Com o corpo acontece o contrário. Ele não recusa um copo de vinho dizendo que daquele já bebeu, e nem se recusa a ouvir uma música, dizendo que já a ouviu antes, e nem rejeita fazer amor, sob a alegação de já ter feito uma vez. Uma vez só não chega. O corpo trabalha em cima da lógica do prazer. E, do ponto de vista do prazer, o que é bom tem de ser repetido, indefinidamente.

O desejo de conhecer é um servo do desejo de prazer. Conhecer por conhecer é um contra-senso. Talvez que o caso mais gritante e mais patológico disto que estamos dizendo (todas as coisas normais têm a sua patologia) se encontre nesta coisa que se chama exames vestibulares: a moçada, pela alegria de entrar na universidade, se submete às maiores violências, armazena conhecimento inútil e não digerível, tortura o corpo, lhe nega os prazeres mais elementares. Por quê? Tudo tem a ver com a lógica da dor e do prazer. Há a dor incrível de não passar, de ser deixado para trás, de ver-se ao espelho como incapaz (no espelho dos olhos dos outros); e há a fantasiada alegria da condição de universitário, gente adulta, num mundo de adultos. Claro, coisa de imaginação... E o corpo se disciplina para fugir da dor e para ganhar o prazer. E logo depois de passado o evento o corpo, triunfante, trata de desvencilhar de todo o conhecimento inútil que armazenara, esquece quase tudo, sobram uns fragmentos: porque agora a dor já foi ultrapassada e o prazer já foi alcançado.

A gente pensa para que o corpo tenha prazer.

Alguns dirão: “Absurdo. É verdade que, em certas situações, o conhecimento tenha essa função prática. Mas, em outras, não existe nada disso. Na ciência a gente conhece por conhecer, sem a experiência de conhecimento ofereça qualquer tipo de prazer.” Duvido. O cientista que horas, dias, meses, anos em seu laboratório não fica lá por dever. Pode até ser que haja pessoas assim: trabalhar por dever. Só que elas nunca produzirão nada novo. O senso de dever pode ensinar as pessoas a repetir coisas: excelentes técnicos de laboratório, bons funcionários, discípulos de Kant (um homem que desprezava o prazer r achava que, certo mesmo, só as coisas feitas por dever). Com o que concordaria o venerável Santo Agostinho que propôs a curiosa teoria, ainda defendida por certas lideranças religiosas, de que o jeito certo de fazer o sexo é “sem prazer, por dever”, burocratas fiéis aos relógios de ponto. Cozinheiro por dever só faz comida sem gosto. Cientista também. Não consegue ver nada novo, é bicho sem asas, tartaruga fiel, rastejante. Idéias criativas requerem os vôos da imaginação, aquilo que em linguagem psicanalítica tem o nome de “investimento libidinal”, coisa que a linguagem irreverente diz de maneira mais direta e metafórica: “tesão” – quando o corpo fica in/tenso de desejo, tenso por dentro, querendo muito. E só por isto que o cientista fica lá, anos a fio – como verdadeiro apaixonado. Tudo por um único momento de êxtase: aquele em que, após um enorme sacrifício, ele diz: “Consegui! Eureka!” E ele sai como doido possuído pelos deuses, pela alegria de uma descoberta. E então me dirão: “- Mas este não é um prazer do corpo. Não é como comer caqui ou fazer amor...” Como não? Será que não percebem que o pensamento é um dos órgãos de prazer do corpo, justamente como tudo o mais? Jogar xadrez: uma coisa do pensamento, que dá prazer. Lutar com um problema de matemática: coisa do pensamento, que dá prazer. E a decifração dos enigmas da natureza, dos seres humanos. Cada enigma é um mar desconhecido que convida: atravessar o oceano Atlântico num barco a vela, sozinho. E quando a gente é capaz de fazer a coisa, vem a euforia, o sentimento de poder: fui capaz; isto tem a ver com um desejo fundo que mora em cada um: ser objeto do olhar admirado do outro, ser o primeiro... E é isto que explica o curioso (e eticamente condenável) costume que têm os cientistas de esconder os resultados das suas pesquisas, trancá-los a sete chaves. Ora, se o objetivo dos cientistas fosse o progresso da ciência eles tratariam de tornar públicas as conclusões preliminares de suas investigações, para que os resultados fossem atingidos mais depressa. Ao contrário. Mais importante para eles é a possibilidade de serem os primeiros, seus nomes aparecendo nas bibliografias e nas citações: evidências de admiração e potência intelectual. E assim é: mesmo quando estamos envolvidos nas tarefas mais absurdamente intelectuais, o que está em jogo é este corpo que deseja ser admirado, respeitado, mencionado, invejado. Narcisismo: sem ele não sairíamos do lugar. Claro que a ciência pode trazer muitas coisas boas para o mundo ( e também más), mas o que está em jogo, no dia a dia da ciência, não é este calculo de benefícios sociais, mas o simples prazer que as pessoas derivam deste jogo/brincadeira intelectual.

Um dos mais lindos documentos da história da ciência foi produzido por Kepler, depois de conseguir formular as suas três leis sobre o movimento dos planetas:

“Aquilo que vinte e dois anos atrás projetei,
tão logo descobri os cinco sólidos entre as órbitas celestes;
Aquilo em que firmemente cri,
muito antes de haver visto a Harmonia de Ptolomeu,
Aquilo que, no título deste quinto livro,
prometi aos meus amigos, mesmo
antes de estar certo de minhas descobertas;
Aquilo que, há dezesseis anos atrás, pedi que fosse procurado;
"Aquilo, por cuja causa devotei às contemplações astronômicas
a melhor parte de minha vida, juntando-me a Tyho Brahe:

Finalmente eu trouxe à Luz,
e conheci a sua verdade além de todas as minhas expectativas...
Assim, desde há dezoito meses, a madrugada,

Desde há três meses, a luz do da e,
Na verdade,
Há bem poucos dias o próprio Sol da mais maravilhosa contemplação brilhou.
Nada me detém.
Entrego-me a uma verdadeira orgia sagrada.
Os dados foram lançados.
O livro foi escrito.
Não me importa que seja lido agora ou apenas pela posteridade.
Ele pode esperar cem anos pelo seu leitor, se o próprio Deus esperou seis mil anos para que um homem contemplasse a Sua obra."

Seria preciso parar e analisar cada frase.

Tudo está saturado de emoção: esperança, crença, amor, promessas, disciplina, sacrifício, uma vida inteira em jogo. Para quê? Kepler não podia imaginar nada de prático, como decorrência de suas investigações. O que estava e, jogo era apenas o prazer da visão, ver aquilo que ninguém jamais havia visto. E toda a espera se realizava numa experiência indescritível de prazer.

Coisa estranha esta fascinação pelo desconhecido.

Curiosidade. É tão forte que estamos dispostos a perder o paraíso, pelo gozo efêmero de ver aquilo que não foi visto. É assim que a nossa estória começa, num dos mais antigos mitos religiosos. Preferimos morder o fruto do conhecimento, com o risco de perder o Paraíso, pela alegria de um outro gozo: saber...

Ali está, diante de nós, a coisa fascinante. Mas não nos basta ver o que está de fora. É preciso entrar dentro, conhecer os seus segredos, tomar posse de suas entranhas. Não é isto que acontece com a própria experiência sexual? Os judeus, no Antigo Testamento, empregavam uma única palavra para designar o ato de conhecer e o ato de fazer amor. “E Adão conheceu a sua mulher, e ela ficou grávida...” É assim mesmo que acontece no conhecimento. Primeiro, o enamoramento. Quem não está de amores com um objeto não pode conhecê-lo. Depois vêm os movimentos exploratórios, a penetração, o conhecimento do bom que estava oculto, experiência de prazer maior ainda.

O fascínio do giro das estrelas, dos descaminhos dos cometas, a beleza dos cristais, jóias simétricas – ah! Quem faz a natureza deve ser um joalheiro para fazer coisas tão lindas assim, e também um grande geômetra para traçar nos céus os caminhos matemáticos dos astros; quem sabe um músico, que toca músicas inaudíveis aos ouvidos comuns, e somente perceptíveis aos que conhecem as harmonias dos números! – os ímãs, seres parapsicológicos, que puxam o ferro sem tocar, todos os corpos do espaço, grandes ímãs, se puxando uns aos outros, atração universal, amor universal, nas marés que balançam aos ritmos da lua e do sol, as plantas, mistérios, também ao ritmo da luz, suas harmonias com as abelhas, a loucura, os sonhos, esta fantástica loteria que se chama genética, os animais arranjados em ordem de complexidade crescente, tudo que uns foram surgindo dos outros, Darwin, a Inflação, que bicho é este, que ninguém consegue domar?, nossa permanente intranqüilidade, seres neuróticos, psicóticos, altares, os homens e mulheres diante de seres invisíveis, os deuses, a agressividade, o sadismo, por que será que há pessoas que sentem prazer no sofrimento dos outros?, as massas, boiadas estouradas, sem limites e sem moral, “Heil Hitler!”, e as pessoas lutam para deixar de fumar e não conseguem e , de repente, sem nenhum esforço, algo acontece por dentro, e param de um estralo...

Não há limites para os mistérios.

Alguns parecem pequenos, e moram nas coisas simples do cotidiano. E nisto o cientista tem algo que o liga ao poeta. Porque um poeta é isto, alguém que consegue ver beleza em coisa que todo mundo pensa ser boba e sem sentido. Por favor, leia a Adélia Prado, mulher comum que os deuses, brincalhões, dotaram desta graça incompreensível de poder transfigurar o banal em coisa bela, aquilo de que ninguém gosta em coisa erótica. Como no seu poema sobre limpar peixes com o seu marido. O cientista é a pessoa que é capaz de ver, nas coisas insignificantes, grandes enigmas a serem desvendados, e o seu mundo se enche de mistérios. Moram em nós mesmos, nos gestos que fazemos, nas doenças que temos, em nossos sonhos e pesadelos, ódios e amores; na nossa casa, no jardim, pela rua... Outros parecem enormes e têm a ver com o início do universo, as profundezas do espaço, as funduras da matéria. Mas tudo é parte de um mesmo universo maravilhoso, espantoso, que nos faz tremer de gozo e de terror, quando nos abrimos para o seu fascínio e penetramos os seus segredos. Há o mistério das coisas, há o mistério das pessoas, universos inteiros dentro do corpo, mundos bizarros que afloram nas alucinações dos psicóticos, e que nos arranham vez por outra, dormindo ou acordados, as funduras marinhas de Cecília Meireles, as florestas do Rilke, Édipos, Narcisos, pessoas grandes por fora onde moram crianças órfãs, grandes solidões que buscam a presença de outras, os mundos da cultura e da sociedade, das festas populares e das grandes celebrações e, repentinamente nos damos conta de que os enigmas da Via Láctea são pequenos demais comparados com aqueles das pessoas que vemos todo dia. Só que nossos olhares ficaram baços e não percebemos o maravilhoso ao nosso lado. Se fossemos tomados pelo fascínio, então pararíamos para ver e veríamos coisas de que nunca havíamos suspeitado.

Mas em tudo isto, é preciso não esquecer de uma coisa: ciência é coisa humilde, pois se sabe que a verdade é inatingível. Nunca lidamos com a coisa mesma, que sempre nos escapa. Aquilo que temos são apenas modelos provisórios, coisas que construímos por meio de símbolos, para entrar um pouco no desconhecido.

O professor entrou em sala, primeira aula de química, e escreveu no quadro: H2O. E perguntou “- O que é isto?” A meninada respondeu ansiosa por mostrar o que sabia: “- É água.” Aí o professor escreveu a mesma fórmula numa folha de papel, e colocou dentro de um copo e lhes ofereceu, dizendo: “- Então bebam...”

Não, ciência não é vida. Da mesma forma que H2O não é água. Na ciência a gente só lida com coisas faladas e escritas, hipóteses, teorias, modelos, que a nossa razão inventou. A vida, ela mesma, fica um pouco mais além das coisas que falamos sobre ela.

A vida é muito mais que a ciência.

Ciência é uma coisa entre outras, que empregamos na aventura de viver, que é a única coisa que importa.

É por isto, além da ciência, é preciso a “sapiência”, ciência saborosa, que tem a ver com a arte de viver. Porque toda a ciência seria inútil se, por detrás de tudo aquilo que faz os homens conhecer, eles não se tornassem mais sábios, mais tolerantes, mais mansos, mais felizes, mais bonitos...

Ciência: brincadeira que pode dar prazer,
que pode dar saber,
que pode dar poder.
Há coisas bonitas.

E também coisas feias: ortodoxias, inquisições, fogueiras, manipulações, ameaças de fim de mundo...

Mas não há como fugir. E bem pode ser que as pessoas descubram no fascínio do conhecimento uma boa razão para viver, se elas forem sábias o bastante para isto, e puderem suportar a convivência com o erro, o não saber e, sobretudo, se não morrer nelas o permanente encanto com o mistério do universo. Assim, cada um poderá se descobrir como ar/tesão que planta, nas oficinas as ciência, as sementes do mundo de amanhã (parodiando as palavras do poeta...)

* Filósofo, Educador, Doutor em Filosofia pela Universidade de Princeton (New Jersey), Professor da faculdade de educação da UNICAMP, autor entre outras obras de Filosofia da ciência (Brasiliense).



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